Corredor da vida

Passa pouco tempo das 10 horas da manhã e ando perdido em trabalho. Toca o telefone e atendo.
- "Tiago... é a mãe. Podes falar?"
- "Estou cheio de trabalho mas diz..."
- "Escuta-me com atenção e mantém-te calmo."
- "Diz-me lá o que se passa", digo, já com a voz a roçar a impaciência.
- "Olha... o pai sentiu-se mal, está no Hospital e ficou internado de urg..."
Interrompo logo: "Mas está bem? Como está? Qual é o Hospital?"
- "Tem calma", diz-me com a voz nervosa, sem conseguir disfarçar.
Do meu lado ouve silêncio. Não consigo dizer nada. Tão estranho é sentir que, num momento, sabemos onde estamos, para onde vamos e temos a inevitável certeza de que tudo nos vai correr bem e noutro momento, sem bem saber como ou porquê, não sabemos onde estamos nem para onde vamos. Aí... tudo o que somos se esfuma. Fiquei vazio. Fiquei cego, surdo, imóvel de tanto medo.
Do outro lado do telefone oiço a minha mãe dizer-me:
- "O pai está no Hospital de Cascais. Encontra-mo-nos lá. Vai com calma... Beijo" E desliga sem me dar respostas.
Não posso contar o que pensei ou que caminho fiz até ao Hospital. Eu não sei e não me consigo lembrar.
Encontro-me à porta do Hospital com o meu irmão.
- "Sabes do pai? O que se passou? Já falaste com alguém?" digo, enquanto lhe passo a mão pelas costas e lhe aperto o pescoço... tentando reconforta-lo e... reconfortar-me.
- "Nada... A mãe está lá dentro mas não disse nada, pá!" diz-me com ar apreensivo...
- "Foda-se, assim não pode ser...", digo, quando já não consigo conter a ânsia e o medo do que poderia estar para acontecer.
Entro pelo Hospital, completamente desnorteado e quando me preparo para ir ao balcão descobrir o meu pai, olho para uma daquelas grandes portas, que se abrem ao meio onde normalmente está escrito algo como "proibida a passagem", e vejo do outro lado e ao fundo do corredor um vulto. Era um vulto que caminha na direcção da porta, devagar e cabisbaixa. Conforme se aproxima, vejo por entre os vidros da porta que esse vulto é a minha mãe. Vem devagar, com as mãos ocupadas, como se não tivesse futuro, como se não tivesse presente. Parecia-me... perdida.
Estranhamente, não dei por mim a pensar nada. Não achei que fosse nada.
Mas hesito em ir ter com a minha mãe. Novamente... medo. Cada vez mais.
O meu irmão começa o caminho e eu sigo-o. Meu Deus, que caminho. Tão poucos metros parecem quilómetros e caminhar dói.
Pouco antes de chegar à porta, oiço "Desculpe lá... não pode entrar aí!" (Claro que sim...)
Depois de passar a porta... gelo. O gelo mais frio que já senti. Não sei (d)escrever o que senti. São aqueles momentos que saímos de nós e não ouvimos mais nada. Tive medo, tanto medo... ao ponto de achar que a minha vida, tal como a conhecia, acabava ali, naquele momento. 
A poucos metros de mim, a minha mãe chorava compulsivamente o que lhe ocupava as mãos era toda a roupa do meu pai. Não vinha amarrotada, vinha toda organizada. Primeiro as calças e a camisa, ainda com a gravata tudo dobrado e enfiado num saco, com os sapatos por cima. Aquela organização aniquilou-me.
Penso:
"Porque é que as roupas do meu pai estão aqui?"
"Porque é que estão enfiadas num saco?"
"Onde está o meu pai e porque é que ele não precisa de roupa?"
"FODA-SE, ONDE É QUE ESTÁ O MEU PAI?"
...
Entre a primeira pergunta e a última passam-se fracções de segundo.
Chego ao pé da minha mãe, que continua a chorar compulsivamente.
Agarro-a pelos ombros e digo:
- "Como está o pai?"
...
- "Mãe.. como está o pai?"
...
- "Responde-me!!", enquanto a abano  e tento limpar-lhe as lágrimas.
A resposta que tenho é apenas choro.. e agarra-se a mim a chorar.
Foi o pior momento da minha vida.
Foi neste momento, a olhar para o meu irmão incrédulo, que dei por mim a pensar "Não... Não, não, não, não... Não pode ser..."
O medo dá lugar ao pânico. Fui-me embora dali. Quer dizer, não fui, mas parte de mim foi. Fugi dali... Lembrei-me de todos os momento que tive com o meu pai, todas as chatices, as brincadeiras, os ralhetes, os golos do Sporting que celebramos juntos, todos os jantares... Lembrei-me da minha primeira bicicleta e dos primeiros toque na bola. Tinham sido com ele.
Quando já não sei quem sou... oiço uma voz sair do meu peito:
- "O pai está bem... não foi nada de grave!". Era a minha mãe que falava agarrada a mim.


Alivio. Não há outra palavra que descreva tão bem o que senti como esta.
Senti-me leve e estupido ao mesmo tempo. Fiquei zangado comigo por me ter permitido pensar o que pensei e furioso com o "egoísmo" da minha mãe que não conseguiu descansar-me antes de desabar em mim toda a pressão que tinha.
- "Onde está o pai?" Pergunto, já mais descansado.
- "Está ao fundo do corredor, está sob observação mas não podes ir lá."
- "Ok... Tudo bem!", respondo com aparente calma.
Começo andar em direcção ao "fundo do corredor" e quando lá chego vejo outra porta com aquelas malditas letras "Proibida a Passagem". Bem, se eu já estava num corredor onde não era permitido estar, passar mais uma porta não iria fazer grande diferença. "Temos pena", pensei.
Entro pela sala a dentro, qual doido à procura do meu pai. Deparo-me com umas 10 camas, todas ocupadas com pessoas vestidas de igual. (É aqui que percebo a "partida" das roupas embrulhadas).
Entre descobrir o meu pai nas macas e a médica de serviço começar aos berros comigo é coisa para se passarem uns 5 segundos. Os últimos 5 segundos de angustia.
Vejo o meu pai e vou ter com ele. Está-se a rir da situação.
A médica grita-me:
- "Saia daqui!! Isto é o S. O.! Não é permitida a visita!!"
- "Claro que sim, doutora..." e continuo a caminhar para o meu pai.
- " Está-me a ouvir??", berra-me enquanto caminha a passos largos na minha direcção.
- "Claro que sim, doutora. Eu oiço bem. Quero só saber se o meu pai está bem". Respondo... já a piscar o olho ao meu pai, que me diz:
- "Tiago... vai embora, filho. Eu estou bem. não foi nada! Vai lá..."
- "EU VOU CHAMAR O SEGURANÇA!!!", adivinhem quem berrou...
Chego ao pé do meu pai e digo:
- "Não tens juízo, velho? Isto faz-se, pá?"
- "Está tudo bem, filho...vai-te lá embora", implora-me, quando já tenho a  médica a agarrar-me pelo braço a tentar expulsar-me.
- "Tá tudo...." Digo, em jeito de despedida e já de sorriso da cara.
- "Desculpe a invasão, não sabia que não se podia entrar", digo para tentar acalmar a médica.


Chego cá fora e digo:
- "O pai está bem! Aquilo não foi nada."
- "Não ouviste a médica?? Não podias entrar ali!!", Ralha-me a minha mãe.
- "É mesmo "ah Tiago"... Tinhas de entrar, né? Isso da "Passagem proibida" para ti é igual a nada...", ironiza o meu irmão.
- "Só tu, namorado!", diz-me a miúda.


Calo-me e olho para os três. Sorrio... Sorrio muito.
"Vou beber água, tenho sede. Alguém quer?"
Começo então a fazer o corredor que, minutos antes, era percorrido pela minha mãe em jeito de amargura e sofrimento. Fiz questão de espalhar alegria por aquele corredor vazio.




Enfim... Nada mudou... a não ser eu.


A vida muda, muda-nos e raramente avisa.
Não dou o futuro como certo e por isso faço questão que quem eu quero, me saiba, me leia, me conheça e sinta em si o que penso.


p.s.: Esta situação passou-se há mais de um ano e o meu pai não teve nada de grave. Pura precaução, disseram-me... Os malandros.

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